segunda-feira, 15 de junho de 2009

Com a palavra, a universidade, artigo de Gabriel Cohn


“Para muitos, ela ainda é um ente distante que não atende às necessidades sociais” Gabriel Cohn é professor aposentado da USP e ex-diretor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas – FFLCH. Artigo publicado no “Estado de SP”:- "Uma universidade cujo fundador lhe dá as costas não poderia mesmo dar certo." O comentário bem-humorado é alusão ao monumento que o visitante da Cidade Universitária em São Paulo encontra logo na entrada, como a saudá-lo. Trata-se da figura de Armando de Salles Oliveira, que empresta seu nome, como fundador, ao campus principal da USP.É claro que o autor da frase (o historiador Carlos Guilherme Mota) seria o primeiro a reconhecer que a USP deu muito certo, assim como tantas outras universidades no País, em especial no sistema público. Em princípio, é simpático que o fundador da USP esteja voltado para a sociedade com ar acolhedor e não de costas para ela, fitando seu território acadêmico com olhar severo.Entretanto, a ambiguidade permanece. Até porque ambos os lados se queixam de falta de consideração pelo outro. A questão sobre quem dá as costas para quem vale como mote para a reflexão sobre as relações da universidade em geral (não só esta ou aquela) e a sociedade.Nos últimos tempos os meios de comunicação vêm dedicando atenção a problemas no funcionamento de instituições políticas, em especial no Legislativo federal. Ao mesmo tempo, situações críticas internas na universidade ocupam o noticiário em São Paulo. É como se estivéssemos diante de duas instituições particularmente vulneráveis a desmandos, cada qual a seu modo.Com relação à universidade, isso com frequência se traduz em duas questões. Por que ela tem tanta dificuldade para resolver problemas internos relativamente simples? Por que ela, que reúne parcela importante da inteligência, se pronuncia tão pouco sobre as grandes questões nacionais? Em suma: por que ela é tão pouco eficiente quando se volta para si própria e ao mesmo tempo é tão indiferente ao que se passa lá fora, na sociedade mais ampla? Na realidade, a universidade não está, de modo algum, de costas para a sociedade ou indiferente a ela. Mas é certamente verdade que ela se descuida da comunicação com o mundo a seu redor. Em consequência disso, pouco faz para demonstrar ao cidadão comum o modo peculiar e inteiramente legítimo pelo qual se faz presente na sociedade à qual pertence. Cabe lembrar que é justamente esse cidadão comum que contribui para sustentar a universidade, com pagamentos diretos pelos serviços quando ela é privada e mediante impostos quando é pública. No caso das universidades públicas estaduais como as paulistas, é verdade que cada cidadão contribui. Mas o faz de modo que oculta e de certo modo perverte a natureza da sua contribuição. Se essa ocorresse mediante alguma forma direta de taxação (de preferência vinculada à renda, coisa difícil no âmbito estadual), poderia criar-se uma clara percepção do montante e do significado dessa contribuição. Quando, no entanto, ela se faz indiretamente, mediante parcela de imposto embutido no preço das mercadorias, todos participam sem saber como nem por quê. Isso gera afastamento entre a universidade e a cidadania.A universidade pública e gratuita corre o risco de ser vista quer como favor, quer como encargo do qual se preferiria escapar. O que não ocorre, para grande perda de todos, é o desenvolvimento no interior da sociedade de uma concepção propriamente pública da universidade como algo valioso, do qual faz pleno sentido participar, ainda que sem benefícios diretos. Voltemos, entretanto, a esse teatro de sombras em que se movem a universidade e a sociedade. Tudo indica que as expectativas recíprocas estão mal calibradas. Como cada lado tende a entender mal seu interlocutor (até porque não lhe é externo: ambos estão entrelaçados), acaba por também não conseguir clareza com relação ao que cabe a si próprio na relação.A universidade desenvolve surtos periódicos de autoflagelação, na qual se acusa em dose dupla daquilo que seus adversários lhe atribuem: incapacidade de responder às necessidades sociais mais prementes, impermeabilidade, elitismo. Para amplos setores da sociedade, por sua vez, a universidade é um ente distante e abstrato, do qual não se sabe bem o que esperar ou exigir (exceto, talvez, a multiplicação de cursos e vagas estudantis).Somente um esforço conjunto pode conduzir à superação desse estado de coisas. Há ideias interessantes a respeito. Uma delas propõe que todo trabalho de pesquisa desenvolvido na universidade pública ou com apoio público (como a Fapesp) que se traduza em texto tipo tese deve gerar uma versão sintética, amplamente acessível e difundida para além do âmbito acadêmico. Nela, se esclareceria o tema, sua importância e para o que servem os resultados. É claro que este último item deve ser entendido de maneira ampla, para acomodar desde trabalhos tecnológicos até a contribuição ao conhecimento puro, que constitui precisamente a área na qual a universidade é imbatível e imprescindível.Para se ter ideia da escala em que um programa desse tipo operaria, tomo como exemplo a produção desse tipo em uma única escola da USP: a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. (O exemplo é bom também para mostrar que, ao contrário do preconceito, se trabalha muito nessa área.) Em 2008 essa escola, sozinha, produziu um total de 585 teses e dissertações (mais de 10 por semana). Este ano, já produziu um total de 253. Medidas como essa não seriam meros paliativos, muito menos ações de relações públicas. Elas permitiriam à sociedade mais ampla avaliar os rumos da pesquisa e da formação acadêmicas. Talvez servissem também para mobilizar o amplo contingente de ex-alunos ainda reticentes ao empenho voluntário em prol da instituição que os formou. Talvez, também, a universidade como um todo aperfeiçoasse os procedimentos para trazer de volta a ela a experiência adquirida pelos seus ex-alunos na vida profissional. Neste ponto, aliás, não me refiro apenas às histórias de sucesso, como também aos malogros para os quais deficiências na formação tenham contribuído. E quanto às dificuldades internas? Em poucas palavras, trata-se do seguinte. Pela sua própria natureza, a universidade absorve, indiscriminadamente e em ritmo que não lhe é próprio, tendências e dilemas da sociedade. Ela internaliza tensões externas e as soma aos seus descompassos internos. Isso gera um complexo de problemas que ela não está equipada para resolver.(Por exemplo, como uma instituição que tem no seu cerne a valorização do debate racional e livre lida com o conflito aberto e com a violência?) No caso limite, corre o risco de ficar à mercê de versões internas de conflitos externos, em crises agudas, mas sem substância para ela, que a expõem à sociedade pelo seu lado mais frágil e vulnerável e oculta o muito que tem de bom. Cabe à universidade explicar à sociedade o que legitimamente lhe cabe fazer para justificar o papel reservado a ela. Isso envolve um aprendizado mútuo, no qual a sociedade aprende a cobrar da universidade aquilo que só ela sabe fazer bem (a pesquisa de ponta e a boa formação) e esta aprende a exercer sua indispensável autonomia com plena abertura para seu entorno social. (O Estado de SP, 14/6)

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