segunda-feira, 30 de maio de 2011

A ética não pode limitar-se a uma teoria da sobrevivência do indivíduo


[OPOVO] Os debates sobre o Código Florestal manifestaram certo paradoxo: por um lado, sabe-se que a virulência dos debates revela que a eles subjazem enormes interesses econômicos; por outro lado, a impressão é que este debate apagou as diferenças ideológicas, pois há representantes das diferentes concepções de sociedade em ambos os lados.

O que não se diz é que isto só se explica porque o fundamento desta postura é uma determinada forma de conceber a realidade, de modo muito especial a natureza e sua relação com o homem que constitui o alicerce do projeto moderno de civilização e que abarca em seu seio diferentes concepções da forma de organizar a vida coletiva. Daí porque é possível como se afirma que certa esquerda se alie com a direita.

F. de Roose e Ph. van Parijs são de opinião que para compreender o fundo deste debate se faz necessário distinguir: o “conservacionismo”, segundo o qual a natureza não tem valor senão como um instrumento a serviço do homem, e o “preservacionismo”, que justifica a proteção da natureza pelo valor que esta possui em si mesma. Significa dizer que para o conservacionismo os processos naturais possuem só um valor instrumental: constituem os meios de que dispõe o homem em seu próprio benefício enquanto que para a segunda posição eles possuem valor intrínseco independentemente da utilidade, portanto, valem por si mesmos.

A primeira posição se radica na grande virada que produziu o pensamento moderno. Este gera transformação radical na concepção de natureza e de nosso relacionamento com ela. A natureza mostra-se agora como uma construção teórica (constituição e validação de seu sentido) e prática (tecnologia) do homem, que a ele se contrapõe radicalmente como matéria-prima de seu conhecimento e ação, o que lhe dá a sensação de ser o “Senhor” (mestre) e “Possuidor” da natureza (Descartes). A questão não é mais expressar a constituição intrínseca da natureza, mas de transformá-la em simples algo quantificável, expressável em linguagem matemática, a nova gramática do mundo, e explorável economicamente.

Com isto se abre o espaço para um novo tipo de saber da natureza, o das novas ciências: não se trata mais de contemplar as coisas enquanto inseridas na ordem cósmica, mas de possibilitar a dominação do homem sobre elas. A natureza se transforma “exclusivamente” em meio para satisfação das carências humanas, instrumento de efetivação de seus desejos, o que conduz à sua sistemática dominação e destruição.

Na concepção alternativa, tudo é portador de constituição própria a partir de onde se estabelecem seu lugar no universo e o parâmetro decorrente do desenvolvimento de suas potencialidades. Neste sentido se pode dizer que cada ente possui um valor e enquanto tal possui um estatuto para a ética.

A ética que brota daqui exprime que as ações são boas na medida em que se radicam em valores de base e não entram em contradição, em última instância, com a totalidade da realidade. A ética não pode limitar-se a uma teoria da sobrevivência do indivíduo, mas é uma “teoria da integração” do indivíduo com os outros seres humanos e a natureza. Trata-se da exigência de construção comum de outro modelo de configuração da vida individual e social, de produção e de consumo radicado nos valores da cooperação, integração e interconexão entre os seres humanos e os seres naturais.

Manfredo Araújo de Oliveira
manfredo.oliveira@uol.com.br
Professor da UFC

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